Escrevo para não me esquecer.
Escrevo para me lembrar de como foram preciosos estes meses.
Não fossem uns dias de férias a seguir à licença e hoje já teria regressado ao trabalho.
Hoje, enquanto te dava a sopa, e naquela fase – muitas vezes logo a seguir à quarta ou quinta colherada – em que ficas com a boca aberta mas cheia de sopa e já não engoles e ficas ali a engonhar e a engonhar e a engonhar concluí que é isso que estou a fazer com as papas em que está mastigado o meu coração. Não sei como vou resistir a deixar-te todos os dias. A certeza de estar a aproveitar-te o mais que posso não diminui em nada esta angústia.
Já tentei falar-te do tamanho deste amor. Se for rever outros posts concluo que me repito, mas este amor não tem tamanho mesurável, não tem palavras que o traduzam verdadeiramente, não me cabe no peito e ao mesmo tempo engole-me como um buraco negro.
Mas depois o tempo pára.
O tempo pára quando te vejo a dormir tranquila. Os traços da perfeição nas tuas maçãs do rosto, na tua boca, nos teus olhos, no teu queixo doce. Os teus suspiros. Dormes tranquila e eu posso sossegar o coração. Estás bem.
As histórias do mundo não são sempre felizes, meu amor. Há pais que perdem meninos para as doenças, para os azares, para sabe-se lá o quê que não se compreende. Contigo nasceram o medo e o pavor de todas essas coisas. Medos difíceis de gerir, nós na garganta quando uma história dessas se atravessa num qualquer momento do nosso dia.
Estás tão extraordinariamente bonita.
Já te sentas com apoio, é na boca que descobres o que já não tem segredos para os teus olhos e para as tuas mãos, ris-te muito, ris-te muito para a tua avó Fernanda, és um peixinho dentro de água na hora do banho. Enches o meu dia de certezas e de anseios. És já uma companheira. Gostas de beijos nos pés, na barriga e no pescoço. Encolhes-te de cócegas enquanto soltas gargalhadas. As noites continuam completas e os despertares os mais maravilhosos. Não há sono ou má disposição matutinos que resistam aos teus olhos e sorriso, abertos e vivos, cheios de propósitos. Há em ti magia, sobrenaturalidade pela manhã. Olho-te, incrédula. Como naquele filme em que todos os dias a personagem acorda para a mesma situação, repetida mas nova.
Acordo. Levanto-me. Normalmente tenho que tirar o teu pai da cama à força (das palavras). Vou à casa de banho. No caminho para a cozinho entreabro a porta do teu quarto – ainda dormes, não estás enfiada debaixo dos cobertores até à testa ou mais ainda – encosto a porta, acho que ainda durmo. Aquecemos o leite, reforçamos o café. Preparo-te o biberão que só vais beber pela metade – hei-de ter que insistir toda a manhã para ires bebendo o resto até à hora da sopa. Estou acordada. Volto ao teu quarto. À medida que abro a porta revela-se um quarto de bebé cheio de pormenores que podiam ter sido meus. Há um quarto de bebé neste apartamento que habitamos há meia dúzia de dias desde que casámos. Espera. Passou um ano e meio. Os pormenores do quarto são mesmo meus. Há uma bebé no quarto, letras alinhadas na cómoda das roupinhas de gavetas forradas a papel de embrulho revelam-me que se chama Aurora. Aurora. Lembro-me de um dia, num centro comercial do norte, ter feito o teu pai assinar um compromisso de chamar Aurora a uma filha – tão longe estávamos da ideia de filhos. Aurora. Um nome que nos enche a boca e transborda e se projecta. AU-RO-RA. Repito. AU-RO-RA. Abro ligeiramente a cortina para deixar entrar a luz.
Essa luz pousa-se sem vergonha nas formas tão desenhadas do teu rosto. Essa luz revela-te e eu aprecio-te, ainda antes de te dar o biberão a beber porque o bebes ligeiramente melhor se a dormir. Quando acordas o teu quarto é todo um mundo novo e as tuas mãos pequenas já tiram o biberão da boca cheias de certezas e de quereres. É para os pormenores do teu quarto que queres olhar. Beber o leite pode adiar-se. Há um pom-pom de papel que sobrou do nosso casamento pendurado no teu candeeiro. As tuas fotografias alinham-se na parede à espera de moduras brancas. Do mobile do teu berço dependuram-se cinco passarinhos feitos a muitas mãos familiares. Da tua cómoda vela-te a Nossa Senhora de Fátima que me comprou a minha bisavó e que recuperei para ti. Há ainda uma Nossa Senhora do Ó que a tua avó Fernanda me ofereceu ainda te esperávamos. Há a colcha cheia de cores que ela te fez. Há o senhor Coelho, miminho indispensável na hora de dormir. Há o hipopótamo Chico, o pato Chico, o Zézinho.
A tua bisavó Lourdes tratou de baptizar todos os bonecos da Chicco de Chicos. O Zézinho escapa, não é da Chicco, baptizei-o eu.
A tua bisavó Lourdes lida contigo como se tivesse acabado de nos criar ainda ontem. A tua chupeta chama-se “pepê” porque ela entendeu que seria assim. Diz-te que quando fores maior vais tirar os ovos aos “pipis”.
Estão todos tão melhores depois de ti. Tão mais bonitos, tão mais novos, tão mais felizes. Não me lembro da última vez em que disseram alguma coisa como “isto agora qualquer hora é boa”, deixas recorrentes a propósito do avançar da idade.
Não me surpreende a paixão da tua avó Fernanda por ti. Já a esperava. Só confirma que antes de ser a melhor avó do mundo é a melhor mãe também. Tenho tão pouco jeito para lho dizer e demonstrar. Conto que ela o saiba. Depois de ti é inevitável ir fazendo o exercício de me colocar no lugar dela em inúmeras situações. Penso muitas vezes nela com a minha idade quando me teve. O que teria feito quando eu ficava com a boca cheia de sopa como tu, se lhe teria dado boas noites também, como se safava connosco pequenos, sem o teu avô cá. Olho para a forma como dá e faz tudo o que tem e pode e lembro-me que esta vida é um ciclo bonito, que a tua bisavó muito provavelmente fez o mesmo por ela e tenho a certeza que o farei por ti também.
Surpreende-me e enche-me de alegria o teu avô Zé. Perde-se e revela-se contigo. Rejuvenesceu 20 anos.
Sei que somos uns para os outros os melhores presentes, seja em que circunstância ou comemoração for.
Rezo para que a vida nos dê oportunidade de nos gozarmos uns aos outros durante muito tempo. Quero muito os meus avós comigo, os teus bisavós e os teus avós contigo. Quero que cresças nessa riqueza que é tê-los. Eles são os melhores lugares, as melhores viagens, o melhor livro, os melhores brinquedos, o melhor restaurante, as melhores histórias.
Vocês são presentes uns para os outros.
A mim basta-me olhar-vos, grata e silenciosa, sorrateiramente, da soleira da porta.
Olhar-vos. A vocês e à magia com que se desembrulham.