Meio ano de ti.

Prefácio

Quando soube de ti compreendi imediatamente no mais fundo e misterioso que existe no meu peito que só poderias vir a ser a menina encantadora que te vais revelando já com seis meses. Nesse lugar único de onde vão brotando sentimentos que nunca tinha conhecido veio também a quase certeza de que serias a Aurora que tanto desejei.

Amei-te desde o dia em que dois tracinhos me puseram na pista de uma gravidez. Enchi-me de alegria quando, à primeira ecografia, soube que estavas tão bem quanto era possível avaliar naquele momento. Não te conto da felicidade que senti quando a médica arriscou seres menina e, enfim, o confirmou. Nesse momento passei a chamar-te pelo nome que te queria por, contra todas as outras sugestões – haveria de ser inflexível, não poderias ser outra que não a minha Aurora.

Imediatamente passei a procurar em tudo significados – haveria de encontrar um livro infantil, uma ilustração ou uma música com o teu nome. Talvez encontrasse uma boneca que viesse a ser a tua melhor amiga.

E procurei. E procurei. E não havia. E não achei. E não agradava.

A verdade é que a história que procurava está por escrever – é a tua história. A música que um dia quis que te identificasse vai-se compondo dos sons que já emites, grande parte deles gargalhadas doces e contagiantes. A ilustração que quis emoldurar e pendurar na tua parede é uma obra incompleta, que o tempo se encarrega de ir pincelando dia após dia – e o teu cabelo cresce, e o teu sorriso ganha expressão, e os teus olhos uma doçura sem fim; as tuas mãos uma destreza incrível, o teu feitio traços tão únicos que chegam a ser comoventes.

Ontem fizeste seis meses e eu entendi que terei que juntar estas memórias deste teu início de vida; memórias que tu não terás e que eu vivo com medo de perder.

Há neste conjunto de recordações tudo daquilo que sou desde o primeiro momento em que soube de ti. E sou tão diferente – melhor, espero.

aurora

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição

Onde tudo nos quebra e emudece

Onde tudo nos mente e nos separa.

Que nenhuma estrela queime o teu perfil

Que nenhum deus se lembre do teu nome

Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro

Livre como o vento e repetido

Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Obra Poética”

Os teus cinco meses.

Escrevo para não me esquecer.

Escrevo para me lembrar de como foram preciosos estes meses.

Não fossem uns dias de férias a seguir à licença e hoje já teria regressado ao trabalho.

Hoje, enquanto te dava a sopa, e naquela fase – muitas vezes logo a seguir à quarta ou quinta colherada – em que ficas com a boca aberta mas cheia de sopa e já não engoles e ficas ali a engonhar e a engonhar e a engonhar concluí que é isso que estou a fazer com as papas em que está mastigado o meu coração. Não sei como vou resistir a deixar-te todos os dias. A certeza de estar a aproveitar-te o mais que posso não diminui em nada esta angústia.

Já tentei falar-te do tamanho deste amor. Se for rever outros posts concluo que me repito, mas este amor não tem tamanho mesurável, não tem palavras que o traduzam verdadeiramente, não me cabe no peito e ao mesmo tempo engole-me como um buraco negro.

Mas depois o tempo pára.

O tempo pára quando te vejo a dormir tranquila. Os traços da perfeição nas tuas maçãs do rosto, na tua boca, nos teus olhos, no teu queixo doce. Os teus suspiros. Dormes tranquila e eu posso sossegar o coração. Estás bem.

As histórias do mundo não são sempre felizes, meu amor. Há pais que perdem meninos para as doenças, para os azares, para sabe-se lá o quê que não se compreende. Contigo nasceram o medo e o pavor de todas essas coisas. Medos difíceis de gerir, nós na garganta quando uma história dessas se atravessa num qualquer momento do nosso dia.

Estás tão extraordinariamente bonita.

Já te sentas com apoio, é na boca que descobres o que já não tem segredos para os teus olhos e para as tuas mãos, ris-te muito, ris-te muito para a tua avó Fernanda, és um peixinho dentro de água na hora do banho. Enches o meu dia de certezas e de anseios. És já uma companheira. Gostas de beijos nos pés, na barriga e no pescoço. Encolhes-te de cócegas enquanto soltas gargalhadas. As noites continuam completas e os despertares os mais maravilhosos. Não há sono ou má disposição matutinos que resistam aos teus olhos e sorriso, abertos e vivos, cheios de propósitos. Há em ti magia, sobrenaturalidade pela manhã. Olho-te, incrédula. Como naquele filme em que todos os dias a personagem acorda para a mesma situação, repetida mas nova.

Acordo. Levanto-me. Normalmente tenho que tirar o teu pai da cama à força (das palavras). Vou à casa de banho. No caminho para a cozinho entreabro a porta do teu quarto – ainda dormes, não estás enfiada debaixo dos cobertores até à testa ou mais ainda – encosto a porta, acho que ainda durmo. Aquecemos o leite, reforçamos o café. Preparo-te o biberão que só vais beber pela metade – hei-de ter que insistir toda a manhã para ires bebendo o resto até à hora da sopa. Estou acordada. Volto ao teu quarto. À medida que abro a porta revela-se um quarto de bebé cheio de pormenores que podiam ter sido meus. Há um quarto de bebé neste apartamento que habitamos há meia dúzia de dias desde que casámos. Espera. Passou um ano e meio. Os pormenores do quarto são mesmo meus. Há uma bebé no quarto, letras alinhadas na cómoda das roupinhas de gavetas forradas a papel de embrulho revelam-me que se chama Aurora. Aurora. Lembro-me de um dia, num centro comercial do norte, ter feito o teu pai assinar um compromisso de chamar Aurora a uma filha – tão longe estávamos da ideia de filhos. Aurora. Um nome que nos enche a boca e transborda e se projecta. AU-RO-RA. Repito. AU-RO-RA. Abro ligeiramente a cortina para deixar entrar a luz.

Essa luz pousa-se sem vergonha nas formas tão desenhadas do teu rosto. Essa luz revela-te e eu aprecio-te, ainda antes de te dar o biberão a beber porque o bebes ligeiramente melhor se a dormir. Quando acordas o teu quarto é todo um mundo novo e as tuas mãos pequenas já tiram o biberão da boca cheias de certezas e de quereres. É para os pormenores do teu quarto que queres olhar. Beber o leite pode adiar-se. Há um pom-pom de papel que sobrou do nosso casamento pendurado no teu candeeiro. As tuas fotografias alinham-se na parede à espera de moduras brancas. Do mobile do teu berço dependuram-se cinco passarinhos feitos a muitas mãos familiares. Da tua cómoda vela-te a Nossa Senhora de Fátima que me comprou a minha bisavó e que recuperei para ti. Há ainda uma Nossa Senhora do Ó que a tua avó Fernanda me ofereceu ainda te esperávamos. Há a colcha cheia de cores que ela te fez. Há o senhor Coelho, miminho indispensável na hora de dormir. Há o hipopótamo Chico, o pato Chico, o Zézinho.

A tua bisavó Lourdes tratou de baptizar todos os bonecos da Chicco de Chicos. O Zézinho escapa, não é da Chicco, baptizei-o eu.

A tua bisavó Lourdes lida contigo como se tivesse acabado de nos criar ainda ontem. A tua chupeta chama-se “pepê” porque ela entendeu que seria assim. Diz-te que quando fores maior vais tirar os ovos aos “pipis”.

Estão todos tão melhores depois de ti. Tão mais bonitos, tão mais novos, tão mais felizes. Não me lembro da última vez em que disseram alguma coisa como “isto agora qualquer hora é boa”, deixas recorrentes a propósito do avançar da idade.

Não me surpreende a paixão da tua avó Fernanda por ti. Já a esperava. Só confirma que antes de ser a melhor avó do mundo é a melhor mãe também. Tenho tão pouco jeito para lho dizer e demonstrar. Conto que ela o saiba. Depois de ti é inevitável ir fazendo o exercício de me colocar no lugar dela em inúmeras situações. Penso muitas vezes nela com a minha idade quando me teve. O que teria feito quando eu ficava com a boca cheia de sopa como tu, se lhe teria dado boas noites também, como se safava connosco pequenos, sem o teu avô cá. Olho para a forma como dá e faz tudo o que tem e pode e lembro-me que esta vida é um ciclo bonito, que a tua bisavó muito provavelmente fez o mesmo por ela e tenho a certeza que o farei por ti também.

Surpreende-me e enche-me de alegria o teu avô Zé. Perde-se e revela-se contigo. Rejuvenesceu 20 anos.

Sei que somos uns para os outros os melhores presentes, seja em que circunstância ou comemoração for.

Rezo para que a vida nos dê oportunidade de nos gozarmos uns aos outros durante muito tempo. Quero muito os meus avós comigo, os teus bisavós e os teus avós contigo. Quero que cresças nessa riqueza que é tê-los. Eles são os melhores lugares, as melhores viagens, o melhor livro, os melhores brinquedos, o melhor restaurante, as melhores histórias.

Vocês são presentes uns para os outros.

A mim basta-me olhar-vos, grata e silenciosa, sorrateiramente, da soleira da porta.

Olhar-vos. A vocês e à magia com que se desembrulham.

5 MESES

Dia(s) da Mãe

Não tendo sido o meu primeiro dia de mãe, ontem foi o nosso primeiro primeiro domingo de Maio juntas.

Dia da Mãe como mandam celebrar os calendários das datas comemorativas de qualquer coisa.

Tu és o presente mais doce e a razão de este ano o Dia da Mãe já não ser só da tua avó e da tua bisavó mas muito – e mais do que de todos – meu.

Sabe que foi melhor do que aniversário. O pai surpreendeu na véspera. Eu andei com o coração contente. E agradeci com todas as forças e todas as vontades este privilégio de ser tua Mãe, de me teres sido concedida, riqueza maior.

Não me canso de te gabar a perfeição da doçura e o feitio. Às vezes duvido até que mereça filha tão encantadora e tranquila.

Sou uma privilegiada.

Só faltou o pai que, felizmente, conseguimos ir tendo em todos os outros dias da mãe que não vêm no calendário.

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Lemas para a tua vida #4

Menina assenta o passo / sem medo ou manha, / ou muito te passa da vida. / Tem que a ver quem faça / o que muito queira. / Caminha sem falsa fascinação. / O teu coração / ainda pára, / forçando a apatia p’lo medo de dançar. / Não se avista um dia / em que o ego não destrate / uma mais bela parte / escondida em ti. / Menina sê quem passa p’ra lá da ideia. / Quem muito se pensa fatiga. / Nem vais ver quem são, / seus olhos no chão, / os que andam p’ra ver-te vencida a ti. / O teu coração / sem querer dispara / força e simpatia ao Ser que te vê dançar. / Vai chegar o dia em que o medo não faz parte / e, por muito que tarde, esse dia é teu. / Desfaz o Nó, / destrava o pé, / desmancha a traça e avança. / chocalha o chão, / esquece os que estão, / rasga o marasmo em ti mesma. / Vê corações, / na cara que pões, / vira do avesso esse enguiço. / Desamordaça a dança pra te convencer. / O teu coração / sem querer dispara / força e simpatia ao Ser que te vê dançar. / O teu coração ainda pára, / forçando a apatia p’lo medo de dançar.

Coisas que te vou querer contar e das quais não me posso esquecer #2

Às 39 semanas e 2 dias eu (e tu) e o teu pai fomos ao cinema. O filme não prometia mais do que entretenimento rápido para uma tarde incrivelmente desocupada e por isso pouco planeada. Mas revelou-se.
A vida secreta de Walter Mitty fala de um homem que passa a vida a sonhar acordado. Para fugir ao tédio, ao vazio e à mesmice do quotidiano, entrega-se a devaneios que o levam a cenários de aventura e romance onde pode ser quem quiser. Mas a sua tranquilidade é posta em causa quando o seu posto de trabalho é ameaçado e ele não tem alternativa senão descer das nuvens e enfrentar os duros contornos da realidade. Mais do que uma mera transição ou mudança de postura, a atitude de Mitty será o início de toda uma nova forma de ver o mundo, construída ao longo de uma jornada de viagens incríveis e momentos de auto-descoberta que o levarão mais longe do que alguma vez poderia imaginar.

http://cinecartaz.publico.pt/Filme/327458_a-vida-secreta-de-walter-mitty

E acaba com esta música em que me é impossível não ler sinais.

There’s a rhythm in rush these days
Where the lights don’t move and the colors don’t fade
Leaves you empty with nothing but dreams
In a world gone shallow
In a world gone lean
Sometimes there’s things a man cannot know
Gears won’t turn and the leaves won’t grow
There’s no place to run and no gasoline
Engine won’t turn
And the train won’t leave
Engines won’t turn and the train won’t leave
I will stay with you tonight
Hold you close ‘til the morning light
In the morning watch a new day rise
We’ll do whatever just to stay alive
We’ll do whatever just to stay alive
Well the way I feel is the way I write
It isn’t like the thoughts of the man who lies
There is a truth and it’s on our side
Dawn is coming
Open your eyes
Look into the sun as the new days rise
And I will wait for you tonight
You’re here forever and you’re by my side
I’ve been waiting all my life
To feel your heart as it’s keeping time
We’ll do whatever just to stay alive
Dawn is coming
Open your eyes
Dawn is coming
Open your eyes
Dawn is coming
Open your eyes
Dawn is coming
Open your eyes
Look into the sun as the new days rise
There’s a rhythm in rush these days
Where the lights don’t move and the colors don’t fade
Leaves you empty with nothing but dreams
In a world gone shallow
In a world gone lean
But there is a truth and it’s on our side
Dawn is coming open your eyes
Look into the sun as a new days rise

 

“Dawn”: verb; noun: 

  • the first appearance of light in the sky before sunrise
  • the beginning of a phenomenon or period of time, especially one perceived as auspicious

Em Português: alvorecer, despontar, raiar, começar a aparecer, amanhecer, madrugada, aurora, alvorada…

DAWN is coming open your eyes / Look into the sun as new days rise.